terça-feira, novembro 29, 2005


fotos de ff (Tárrega 05)

Há alguns anos a infelicidade beijou-me, entregando-me traiçoeiramente à tristeza. Apesar dos esforços continuo sua prisioneira.

sexta-feira, novembro 25, 2005

os gestos e as palavras

foto de ff

Partilho convosco um texto que muito me sensibilizou ao ser enviado por alguém que muito estimo.

"Muito obrigado" – os três níveis da gratidão
Dizíamos que a limitação do conhecimento humano reflete-se na linguagem: não podemos expressar o que as coisas são, na medida em que não sabemos completamente o que elas são. Além do mais, muitas vezes, uma palavra acentua originariamente só um dentre os muitos aspectos que a realidade designada oferece. E pode ocorrer que, com o passar do tempo, essa realidade mude, evolua substancialmente a ponto de perder a conexão com o étimo da palavra, que permanece a mesma. Isto não nos choca, pois, no uso quotidiano, as palavras vão perdendo transparência: falamos em salada de frutas porque envolve mistura e nem notamos que salada deriva de sal. Do mesmo modo, o barbeiro, hoje em dia, quase já não faz barbas, mas cortes de cabelo; como também o tintureiro já não tinge, mas só lava; o garrafeiro compra jornais velhos e muito poucas garrafas; o chauffeur não aquece, mas dirige o carro; e nem nos lembraríamos de associar funileiro a funil.
Se essas incompatibilidades não nos causam estranheza é porque a linguagem tornou-se opaca para nós: dizemos colar, colarinho, coleira, torcicolo e tiracolo e não reparamos em que derivam de colo, pescoço (daí que seja incompreensível, à primeira vista, a expressão "sentar no colo").
Essas considerações são importantes preliminares ao estudo da gratidão e das formulações que ela recebe nas diversas línguas. Tomás ensina que a gratidão é uma realidade humana complexa (e daí também o facto de que sua expressão verbal seja, em cada língua, fragmentária: este ou aquele aspecto-gancho é o acentuado): "A gratidão se compõe de diversos graus. O primeiro consiste em reconhecer (ut recognoscat) o benefício recebido; o segundo, em louvar e dar graças (ut gratias agat); o terceiro, em retribuir (ut retribuat) de acordo com suas possibilidades e segundo as circunstâncias mais oportunas de tempo e lugar" (II-II, 107, 2, c).
Este ensinamento, aparentemente tão simples, pode ser reencontrado nos diferentes modos de que as diversas línguas se valem para agradecer: cada uma acentuando um aspecto da multifacética realidade da gratidão. Algumas línguas expressam a gratidão, tomando-a no primeiro nível: expressando mais nitidamente o reconhecimento do agraciado. Aliás reconhecimento (como reconnaissance em francês) é mesmo um sinônimo de gratidão. Neste sentido, é interessantíssimo verificar a etimologia: na sabedoria da língua inglesa to thank (agradecer) e to think (pensar) são, em sua origem, e não por acaso, a mesma palavra. Ao definir a etimologia de thank o Oxford English Dictionnary é claro: "The primary sense was therefore thought"(6). E, do mesmo modo, em alemão, zu danken (agradecer) é originariamente zu denken (pensar). Tudo isto, afinal, é muito compreensível, pois, como todo mundo sabe, só está verdadeiramente agradecido quem pensa no favor que recebeu como tal. Só é agradecido quem pensa, pondera, considera a liberalidade do benfeitor. Quando isto não acontece, surge a justíssima queixa: "Que falta de consideração!"(7). Daí que S. Tomás - fazendo notar que o máximo negativo é a negação do grau ínfimo positivo (a última à direita de quem sobe é a primeira à esquerda de quem desce...) - afirme que a falta de reconhecimento, o ignorar é a suprema ingratidão(8): "o doente que não se dá conta da doença não quer se curar"(9).
A expressão árabe de agradecimento shukran, shukran jazylan situa-se diretamente naquele segundo nível: o de louvor do benfeitor e do benefício recebido. Já a formulação latina de gratidão, gratias ago, que se projetou no italiano, no castelhano (grazie, gracias) e no francês (merci, mercê)(10) é relativamente complexa. Tomás diz (I-II, 110, 1) que seu núcleo, graça comporta três dimensões: 1) obter graça, cair na graça, no favor, no amor de alguém que, portanto, nos faz um benefício; 2) graça indica também dom, algo não devido, gratuitamente dado, sem mérito por parte do beneficiado; 3) a retribuição, "fazer graças", por parte do beneficiado. No tratado De Malo (9,1), acrescenta-se um quarto significado de gratias agere: o de louvor; quem considera que o bem recebido procede de outro, deve louvar.
No amplo quadro que expusemos - o das expressões de gratidão em inglês, alemão, francês, castelhano, italiano, latim e árabe - ressalta o caráter profundíssimo de nossa forma: "obrigado"(11). A formulação portuguesa, tão encantadora e singular, é a única a situarse, claramente, naquele mais profundo nível de gratidão de que fala Tomás, o terceiro (que, naturalmente, engloba os dois anteriores): o do vínculo (ob-ligatus), da obrigação, do dever de retribuir. Podemos, agora, analisar a riqueza de sugestões que se encerra também na forma japonesa de agradecimento(12). Arigatô remete aos seguintes significados primitivos: "a existência é difícil", "é difícil viver", "raridade", "excelência (excelência da raridade)". Os dois últimos sentidos acima são compreensíveis: num mundo em que a tendência geral é a de cada um pensar em si, e, quando muito, regularem-se as relações humanas pela estrita e fria justiça, a excelência e a raridade salientam-se como característica do favor. Mas, "dificuldade de existir" e "dificuldade de viver", à primeira vista, nada teriam que ver com o agradecimento. No entanto, S. Tomás ensina (II-II, 106, 6) que a gratidão deve - ao menos na intenção - superar o favor recebido. E que há dívidas por natureza insaldáveis: de um homem em relação a outro, seu benfeitor, e sobretudo em relação a Deus: "Como poderei retribuir ao Senhor - diz o Sl. 115 - por tudo o que Ele me tem dado?". Nessas situações de dívida impagável - tão freqüentes para a sensibilidade de quem é justo - o homem agradecido sente-se embaraçado e faz tudo o que está a seu alcance (quid-quid potest), tendendo a transbordar-se num excessum que se sabe sempre insuficiente(13) (cfr. III, 85, 3 ad 2). Arigatô aponta assim para o terceiro grau de gratidão, significando a consciência de quão difícil se torna a existência (a partir do momento em que se recebeu tal favor, imerecido e, portanto, se ficou no dever de retribuir, sempre impossível de cumprir...)”
Antropologia e Formas quotidianas - a Filosofia deS. Tomás de Aquino Subjacente à nossa Linguagem do Dia-a-Dia
(Conferência proferida na Universitat Autònoma de Barcelona,Dept. de Ciències de l'Antiguitat i de l'Etat Mitjana, 23-4-98)


É sempre especial participarmos de caminhadas inspiradas e inspiradoras, congratulo.me por essa oportunidade.

quinta-feira, novembro 24, 2005

onde está?



Alice, onde está? Ou será antes: o pai de Alice, onde está? E a mãe?

Filme português onde se percepciona a dor da perda tão intensa que aquele que a vive se recusa a essa perda, por recusa à dor. Parando o tempo na construção de uma rotina que repete continuamente o mesmo dia, numa ilusão de perpetuar esse tempo até que tudo retome a normalidade ritualizada ,onde a filha perdida esteja presente nas suas manifestações de criança feliz. Num processo fictício de nunca ter havido uma ausência. Assim uma nova rotina substitui uma rotina anterior que lhe foi resgatada, na esperança de que essa nova rotina recupere a anterior, como fenómeno racional movido exclusivamente pelos processos emocionais da perda não aceite – numa luta contra o tempo na eterna busca da imortalidade tão ansiada por nós mortais.
Mas o humano não pode fugir de si próprio, nem da sua caixa negra que não perde qualquer registo, o qual é mais intenso quanto mais especial e significativo.
Assim o paradoxo instala-se: por um lado temos um homem neste still de vida que aparentemente lhe permite continuar, prosseguindo activamente potente na sua impotência; mecanismo esse que montado da forma cinematografada concorre para a intensificação da dor acumulada (da qual pretende evadir-se) e da dupla perda associada: a perda da filha desaparecida e a da esperança suportada pela montagem do controlo dos espaços anteriormente percorridos pela filha, no inevitável ‘tiquetar’ do tempo que não se retém a não ser nas nossas memórias.
Desta forma a dor é um crescendo no filme, tanto pelo alheamento percebido face a tudo o resto (quer da pai, quer da mãe, como do marido com a esposa como da esposa para com o marido), como pelos monólogos implicados numa surdez recíproca de quem ouve o eco dos seus gritos, onde não há sons renovados. Dor retratada na imobilidade cada vez mais intensa na mãe e no aparente embotamento afectivo do pai. Dor que culmina na desistência de continuar a respirar e na desistência de continuar a controlar, marcos temporais afectivos que nos remetem para um luto que continuará ou antes começará a ser percorrido num ritmo mais em conformidade com um tempo cronológico e afectivo que se torne viável.

Com excesso ou não de tempo para a abordagem do sofrimento, acrescentando ou não algo importante para o espectador, este filme é real. A dor não tem hora marcada para cessar, invade, prolonga-se e excede-se.
Os actores revelaram ser possível interpretações um pouco distintas daquelas que parecem ser vulgo nas realizações nacionais. Nesta obra parece-me haver um marco na temática e forma distinta de a abordar relativamente ao usual no cinema português, pelo menos naquele que tive oportunidade de assistir.
Aconselha-se, pelo menos para quem não foge do lado trágica da dor inerente ao risco de viver.