terça-feira, junho 28, 2011

Confecção dos afectos #4#

foto ff (Paris 2011)


De lá vislumbrava os risos os abraços os choros as zangas as reconciliações os pares as famílias as crianças. Autopsiava cada pormenor, cada trejeito, cada sequência, para se inteirar de cada formula do sentir. Especializou-se na aritmética das emoções, somas e subtracções, das abundantes e desejadas às anuladas; tanto as estudou e manipulou que esqueceu de as sentir; vestia os fatos de cada uma dessa formulas – sempre demasiado algo. Quando se viu no espelho perdido pela Branca de Neve, num desvario de Cinderela aterrorizou-se: tão pálida, tão plástica, tão sem vida, como um manequim numa vitrine a quem o fluído escarlate fora singrado e criopreservado…

segunda-feira, junho 27, 2011

Confecção dos afectos #3#

foto ff (Paris 2011)

Ficou em carne viva, sem pele que a cobrisse. No dia seguinte usou água da chuva para se lavar, alívio por instante, ardor constante; doía o ar, doía o movimento, doía olhar e ser olhada, doía articular, doía pensar, doía calar, doía esquecer, doía tocar, doía sentir. No mês seguinte quis vestir outro fato pré-fabricado, todo ele era demasiado algo, pequeno grande macio, duro, espesso, fino... No ano seguinte, e no seguinte, e no seguinte... continuava despida, com frio, fome e sede, ardia-lhe sorrir, era como arreganhar os dentes. Via lanugem e ficava de olho húmido, via braços fortes e rostos duros de luta com a terra e sentia que lhe fugiam para cada vez mais longe... tudo ficava numa terra distante, outra e outra e outra, ficou na ilha de si consigo mesma, como num Olimpo inócuo, como um Deus que é todos numa solidão de heterónimos, todos derreados, como pessoanos fracassados.

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domingo, junho 26, 2011

Confecção dos afectos #2#

foto ff (Paris 2011)



Nem uma gota de sangue se desperdiçava, apesar das feridas que dentro deflagrava. Torciam-se-lhe os pulmões, levavam os rins atrás numa dança desenfreada, vinha o coração e gritava até silenciar, os intestinos tamborilavam sons da Amazónia, os ossos faziam estalidos e a pele rangia... nada se derramava nem infiltrava. Era estanque, hermética como uma impenetrável cela de aço. Por vezes abria-se uma pequena fresta onde assomava uma goela aberta silenciosa - qual grito de Munch, que logo era violentamente recolhida. Dias, e dias, e dias, e dias... dias, um abalo na válvula mitral, onda após onda, propaga-se p'los a aurículos e ventrículos, irradiando-se deste músculo para as esponjosas cavidades alveolares e contiguamente vibra como um vulcão em urgência de zona de erupção, todos orifícios são convocados e invocados, começam a ceder; e, como um cristal, o fato em poucos suspiros desfaz-se em incontáveis e irrecuperáveis pedaços.

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Confecção dos afectos #1#



foto ff (Paris 2011)


Era como um fato invisível tecido pelos fios de cabelo, primeiro de lanugem com os seus que se renovam cada dia, do corte aparador e do pentear que os solta como que para o ninho dos afectos. Misturavam-se-lhe os fios do pensamento em que se pensavam porque existiam um para outro e para existirem, mais o dourado pó dos sonhos do olhar que a projectavam no futuro. Por fim o som das gargalhadas e o movimento de balançar-se na sua perna direita alojam-se nos entrelaçados do fato afecto feito à medida para se ousar por esse mundo de amor e medo, mimo e desafio, ameaça e concretização, crueza e bondade. Foi vaidosa e confiante guardando seu fato de amor como quem guarda a alma, estava-lhe colada com suavidade dentro e a dureza fora. Não mais o despiu, nem um só pedaço, nunca outro se atreveu a vestir. Meticulosamente tratava-o para que se mantivesse como novo, renovado e brilhante; sempre ele, sempre o velho com aspecto contemporâneo. Pavoneou-se a cores e a preto e branco, exibiu-se em latim e germânico, sempre fiel a si e à sua pele de afectos como um elo umbilical.

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o fado dos que têm mais que um neurónio irrequieto

foto ff (Paris 2011)

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