Sonhei que acordara de um sonho
Escher
Sonhei que acordara de um sonho em que os as pessoas estavam apartadas por muros altos, espessos, escuros e húmidos. As pessoas esbracejavam para se fazerem ouvir pelos que habitavam os muros adjacentes, mas o máximo que conseguiam era esfarraparem os dedos, esfolarem as membros e sulcarem as faces.
Sonhei que acordara deste sonho angustiante para um dia em que a verdade se espantou e fez espantar. Nesse dia pais e filhos reencontraram-se, antigos amantes revisitaram-se, amigos distantes solidarizaram-se. Foram ditas palavras que nunca haviam sido soletradas, foram abundantemente oferecidos olhares meigos, os braços estenderam-se para acariciar o aveludado da pele, os sorrisos construíram-se como os luminosos enfeites de natal a berrar que poderíamos deixar os corações dispararem de felicidade, os ouvidos juntaram-se ao peito para se embalarem naquele bater que gritava a vida. Assim bastava olharmo-nos para que outro soubesse o que necessitávamos, as palavras e os gestos fluíram com a naturalidade com que a lua nos visita, com a beleza com que a natureza incansavelmente se maquilha e com a intensidade com que o sol nos aquece.
Então:
Não houve mais desencontros.
Não houve mais mal-entendidos.
Não houve mais corações encarcerados nas suas masmorras solitárias.
Não houve mais sois desperdiçados.
Não houve mais luas desamparadas.
Não houve mais marés assoladoras.
Não houve mais dor de existir.