terça-feira, setembro 28, 2004

Regresso bíblico

Pousava o olhar na blogesfera quando uma, aparentemente, valiosa informação se me colou à vista.
Eu até pensei que estávamos perante o fenómeno do aparecimento de uma figura bíblica - quiçá o anticristo, com algum desfasamento temporal (mas o que é o tempo e a sua contagem numa altura em que viajamos numa noite para os vários cantos do planeta, para não falar de algumas viagens no interior humano), que teria olhos vermelhos assustadores, ou seriam raios X que lêm tudo o que nos vai na alma (seja qual for a sua composição e localização)? Tal foi o tumulto neural que o Luís da natureza do mal (o nome deste blog faz-me sempre pensar na Simone cantando "quem me dera ser cruel naturalmente, para descobrir onde o mal nasce e destruir sua semente"... não, não quero destruir nada nestes espaço, talvez desconstruir, se for capaz - em criança fui dada a desmontar engenhocas para as conhecer, como tantas outras crianças, mas será que isso me habilita a desconstruções mais abstractas?) parece ter insurgido que fiquei a pensar: tenho andado a perder algo de muito importante!!? Parece que terei de averiguar sobre este Filipe, desparecido reaparecido, talvez um filho pródigo.

Bondade e cumplicidade redentora

Estava à procura de viagens acompanhadas quando no respirar encontrei companhia e por momentos senti-me a vaguear num conto ... onde todas as emoções e sentires faziam sentido, tudo muito humano (se houver definição para tal) e identificável por quem, por gosto ou necessidade, se perde só na noite dos sobreviventes e resistentes. Afinal não era um conto, pois sendo tão real ainda por cima tem um protagonista definido e, confesso, que se não tivesse o acaso permitido que "A da frente" lhe provocasse tamanha empatia eu ficaria muito apreensiva pela dureza, falta de compaixão e generosidade com tudo estava a ser percebido (com todo o respeito por esse sentir, obviamente). Mas, uma reviravolta miraculosa trouxe bondade e manifesto de busca de cumplicidade redentora. Foi bom estar na noite de Lisboa sem corpo, só sentir e sentir, obrigada pela viagem.

sábado, setembro 25, 2004

Escrever um livro

"Ninguém pode escrever um livro. Para
Que um livro seja verdadeiramente,
Requerem-se a aurora e o poente,
Séculos, armas, mar que une e separa."

Escreve Jorge Luís Borges no poema Ariosto e os Árabes.
Fiquei triste e aliviada.
Triste porque perdi qualquer esperança de o fazer.
Aliviada porque justifica ainda não o ter feito.

Faltam-me muitas eternidades para que o livro,
Obra sagrada que encerra odores, temperos e paladares especialmente cultivados nos campos que rodeiam o Olimpo, delicadamente cozinhados para acalmar os deuses mais irados, impacientar os mais refastelados, estimular os mais desesperançados e requintar os mais abrutalhaos,
possa ser um facto que vai para além dos meus onirismos vigis, das minhas deambulações internas e das minhas contemplações.

Assim vou tentar cumprir esta eternidade com brevidade para poder passar à seguinte, e depois a que se segue e...

Ousar ser Primavera

São os rebentos de flores que agora estão a ousar espreitar da planta que está ao meu lado neste escritório (como se me quisessem desafiar para outros voos mais belos), são os raios de sol que me despertam sem pedir autorização e investigam todo o meu espaço com todos os direitos do mundo, são os trinados dos pássaros que teimam em se fazer ouvir, são eles que me comovem e me lembram que também já fui Primavera ousada, sem medo e sem barreiras.
Agora luto contra o embaraço de querer ser novamente Primavera, quando talvez deva ser Verão e não saiba como, ou talvez já o seja mas sem o conseguir vislumbrar.
Seja como for este meu estar é também um grito de liberdade, uma tentativa de mobilizar forças por causas, talvez já esquecidas, minhas, doutros e de tantos outros. É um não calar nem conformar com os desaires que nos rodeiam, sem ser necessário ir a tragédias nacionais ou internacionais, mas tão só às pessoas que nos ladeiam e se deixam cilindrar pelas exigências fúteis mas sedutoras ou intimidantes do dia-a-dia.
A isto digo não, a isto procuro escapar. No entanto por vezes é uma luta solitária, é um construir de uma ilhota que isola, onde também há mosquitos, plantas tão belas como venenosas, onde o ser humano é tão belo como distante, onde o dar as mãos tem a impossibilidade da distância do mar, onde as lágrimas podem queimar de tão salgadas a rolarem numa pele fragilizada pelos esforços.
Nestas alturas procuro cúmplices de forma mais desesperada, colos mais abastados e mãos que se possam aproximar para não escorregar nem magoar de forma severa. Dai os gritos de S.O.S., por vezes silenciosos, mais a pedir que a dar, mais mendiga que benemérita (sem qualquer presunção de que alguma vez o tenha sido).

Contemplação

Falava com meu pai enquanto ele aguardava na sala de espera da cirurgia II, para uma leve intervenção cirúrgica. Procurávamos entreter-nos para que o tempo de espera, e aquilo por esperávamos, fosse pesando como 1Kg de algodão em vez de 1Kg de chumbo. Quando na minha boca afloraram palavras que eu própria estranhava, entre estas a paciência assumia a liderança, apanágio da vida de meu pai neste Verão tão indefinido.
Às minhas palavras calmamente responde meu pai, tão fiel a ele próprio, como pessoa que remói as suas próprias interpretações até que elas se fundam com a sua pele, seus olhos, ouvidos, nariz e boca. Assim, com uma simplicidade desconcertante que o caracteriza, ele surpreende-me com 3 verdades simples e certeiras, dizendo que há três características essenciais à condição humana desfia a paciência, humildade e observação. Senti-me tão agraciada com esta partilha, tão nova e verdadeira como o nascer do sol que todos os dias nos reinicia o prazer de o vivenciar com todo o seu esplendor , numa repetição com o fulgor da primeira vez.
Ripostei com o meu acordo e acrescentei que à observação eu redefiniria e preferia a contemplação.
Assim derivei e deambulei pelo fascínio que me provoca essa acção, exteriormente pouco activa, que antevejo e almejo mais amiúde.
A possibilidade de me embriagar com o desenrolar dos acontecimentos naturais, do sentir, cheirar e ouvir um rio nos seus desafios diários, o céu nos seus preparativos festivos de cor e forma, as flores no seu requintado desfile, as árvores no seu respirar continuamente silencioso e generoso, os humanos nos seus trejeitos apressados com rostos sofridos levando pela mão crianças que procuram parar o tempo para crescer sem que a gravidade lhes tolha o movimento de ascensão.
Quando se contempla tudo dentro de nós se acelera e se lentifica, num processo paradoxal de redução de estímulos exteriores invasivos e aumento de estímulos necessitados, acolhidos e laborados, numa calma sem atropelos, que se desenlaça por etapas ansiadamente significativas, para a construção que é cada um de nós.
Contemplar é um dos verbos que deveria ser ambicionado como parte das nossas acções diárias, pela naturalidade que isso implica, sem elaborações estrategicamente definidas, cientificamente planeadas, sem artefactos nem apetrechos. Neste acto bastamo-nos enquanto seres vivos parte de um todo que é o universo, em que nos basta simplesmente estar e olhar à nossa volta para que um tumulto de pensar e sentir aconteça, dentro dos limites que nos separam e distinguem do todo de que somos parte integrante, para nos fundirmos na harmonia da composição desta existência espácio-temporal.

quinta-feira, setembro 23, 2004

A dança do policia!

Visitas (in)esperadas

Esta semana chegaram duas visitas para uma estada demorada. Eu sabia que elas viriam mas não deixam de me causar surpresa sempre que assumem à minha porta, nunca marcam o dia exacto de vinda nem de partida, essa incerteza é a arma do poder que têm sobre mim. No entanto, eu não me recuso nunca a recebê-las, recebo-as calorosamente, com abraços profundos, dou-lhes os meus tempos mais preciosos, confidencio-lhes os meus maiores e mais profundos segredos, acolho-as no meu colo e leito, levo-as a passear por locais tão raros, de tal forma que quando já se sentem completamente satisfeitas partem quase abruptamente, nunca sem antes prometerem voltar, promessa a nunca faltam, isso é certo e sabido.
O seu efeito sobre mim é sempre notório. Com elas e por elas vou ao mais fundo de mim, aos jardins mais secretos, com flores raras e vistosas nalguns cantos, com flores murchas e ressequidas noutros, e ainda cantos secretos que terei de descobrir ou preparar para ai poderem florescer outras flores que desconheço. A tristeza leva-me aos lugares mais sombrios e húmidos, onde pairam as palavras mais ambíguas, as menos promissoras ... A nostalgia conduz-me aos cantos de flores raras e vistosas onde raios de sol as envolvem num abraço protector, seguidamente leva-me aos cantos abandonados, onde a água escasseia (por ser um liquido precioso e raro que se extrai do dar de mãos, da húmidade dos lábios e corpos em união). Assim, num misto de vislumbre e dor fico num cansaço só reposto por um longo descanso no banco do “encontro das mais belas cores do meu interior”.
Por estes dias não posso deixar que a minha alma seja tocada por mãos e palavras que não exprimam doçura, candura e sabedoria altruísta, pois a sua sensibilidade e estado de busca fá-la ficar susceptível de arranhões fundos e de difícil cicatrização.
O esforço feito pelas caminhadas profundas, numa procura de se robustecer e ganhar novas cores, deixa-a temporariamente exausta. Exaustão que recupera tão mais rápido quanto convive com braços que afagam, escuta palavras que embalam, cheira odores que acalmam e vê cores que inspiram. Dai a sua (minha) sede de acalentos quase mágicos e, por vezes, raros; o que torna a busca ainda mais intensa e significativa, assim como preciosa. Parecemos (ela e eu, sem distinções, nem confusões) velhos garimpeiros a explorarem o faroeste, indivíduos esperançosos e dedicados, também em extinção nos tempos que decorrem; no vislumbre daquilo que lhe trará a felicidade, o brilho do precioso metal torna-se equivalente ao brilho de um olhar mais eloquente, de um rosto sereno e sábio, de um sorriso compreensivo, de gestos de companheirismo e cumplicidade e de um estado de crescimento pessoal cada vez mais susceptível de ‘ver para além de”.
São visitas insubstituíveis e com que conto sempre, até que o meu último sopro ‘contamine’ aqueles que me rodeiam e respiram, com uma última esperança de partilha e continuidade.
Quem seria eu sem as minhas mais devotas amigas tristeza e nostalgia? Impossível imaginar-me e refazer-me, sou com elas e através delas, entre tantas outras visitas que me envolvem, revolvem e devolvem.
Até breve queridas amigas, vão dando notícias como só vocês sabem. Eu cá vos espero paciente e esforçadamente.

quarta-feira, setembro 22, 2004

No Tempo Em Que Os Objectos Falam

No Tempo Em Que Os Objectos Falam

No que observo e apreendo diariamente arrepia-me a escassez no uso de palavras e gestos nos humanos para expressar emoções de uns para com os outros. No entanto, não sei se por compensação, rasgos de imaginação, falta de gosto mesmo ou até brejeirismo numa pseudoliberdade da sexualidade (inclino-me mais para estas últimas), elas abundam subversivamente na utilização publicitária em relação a objectos. Os objectos tornam-se alvo da irradiação emocional humana, irradiação que parece (felizmente) não ter deixado de existir, mas que passou a ter como foco os protagonistas do consumo (infelizmente). Os objectos, num processo de animação, ganham vida como no ‘tempo em que os animais falavam’, passando a caracterizar o tempo presente como o ‘tempo em que os objectos falam’, e estes procuram donos que por eles se apaixonem e sintam desejo, que neles depositem lealdade, fidelidade e compromisso, prometendo eles a reciprocidade; os humanos desenvolvem relações de paixão e apego por esses objectos que com eles convivem diariamente, através da ‘caixinha mágica,’ na procura de uma ilusória felicidade permanente prometida através do ‘ter’ e ‘possuir’ coisas e coisas .

O eco que estas percepções fazem na minha preocupação social provocam-me grande ansiedade, relativamente a futuros acontecimentos possíveis. Como tal é com ansiedade que, nas minhas raras deambulações pelas superfícies comerciais, averiguo da existência da tão temida secção de venda de crianças: a bom preço, com promoções de ‘leve dois pelo preço de um’, e possibilidade de escolha da cor dos olhos, cabelos e pele, altura e peso, nível intelectual e opções políticas e religiosas – na forma de um “Admirável Mundo Novo”, sabiamente profetizado por Aldous Huxley, enfim uma criança à sua medida. Assim todas as expectativas e desejos de concretizações que um filho venha na substituição de executante daquilo que o pai não teve oportunidade, ou ainda de que este cumpra o papel de trofeu que garante uma valorização sócio-cultural, tornar-se-á uma realidade; logo termos pais satisfeitos e felizes e viveremos num mundo sonhadoramente paradisíaco; claro que deixamos ter filhos que se venham a tornar pais que também irão lutar para cumprir desejos pessoais, pois estes filhos ‘escolhidos’ não passarão de extensões e prolongamentos temporais e cognitivo-emocionais dos seus pais. Talvez tenhamos mesmo de encontrar novas palavras para designar estas novas forma de ‘parentesco’, ou alterar nos manuais e dicionários os conceitos cada vez mais inadequados.

É grande o horror com que deixo escorrer estas palavras por entre os meus cabelos, deles para o meu rosto, pescoço e colo e finalmente os acolho como gotículas de fel com os meus dedos alongados pelo excesso de utilização e, com eles, finalmente, desenho estas emoções e reflexões conturbantes.
Sinto a raiva e revolta crescer, apetece lançar à queima roupa:
Que se passa, estaremos a preparar-nos para quando formos nós não mais do que robôs? Ou então é assim que nos transformamos em robôs? Vivo em estado de grande apreensão, desdobro-me na procura de respostas e soluções, inquiro à minha volta desenfreadamente sem obter respostas e já estou em luto antecipatório para a perda da expressividade humana, espontânea e autêntica, não manipulada e condicionada como se fôramos personagens da “Laranja Mecânica”. Não que eu recolha armas, sou teimosa até ao âmago, fico a gritar até que a última cinza dos nossos restos mortais seja lançada em terras férteis e depois continuarei até que a afonia se torne irreparável esperando que outra voz me substitua.

E com esta voz me apresento na inauguração deste espaço de partilha, que espero o seja de facto.