Abundam em progressão exponencial as peças de saciação para esta geração sôfrega de pequenez humana. Numa cadeia em série, sem fim, parece que estamos numa epidemia de dependentes das perversões, da maldade, dos valores morais dúbios, da decadência existencial onde prevalecem os contornos de um hiperrealismo encerrando um vazio num interior oco ou putrefacto.
São cada vez mais em número e em irrelevância na pertinência do enriquecimento humano, os programas de entretenimento televisivo. Conseguem suplantar-se na capacidade em espiral de ir cada vez mais longe na exposição fútil, despojada de qualquer valor e princípio digno de ser visualizado, que não pelos próprios protagonistas. Delineiam-se, organizam-se equipas e magotes de pessoas, amontoam-se somas que fariam felizes crianças que não têm pão para comer, em ‘causas’ oprobriosas na espécie humana.
Não, não acredito que isso nos seja inerente, que essa sede de ver horror e ‘podre’ do outro faça parte da ‘natureza humana’, como tantos apregoam, aceitando e justificando actos tão tristes e patéticos como os que invadem diariamente os nossos lares, salas de espera, cafés e restaurantes – aguarda-se a invasão nas paragens de autocarro, nas esquinas urbanas e em todas as vitrines. Assim não teríamos construído, com tanto carinho, desejo, sonho e beleza todos os heróis que nos inspiram, reais numa existência física, ou oníricos numa existência mitológica.
Não! Acredito que um dia um lírico e bem intencionado manipulador, sonhou com um mundo melhor e na forma de o alcançar, para tal imaginou se todos pudéssemos ser célebres, a todos fosse dada a importância que cada vida encerra, que o que está dentro de cada um fosse valorizado e tivesse um espaço de eleição para ser partilhado. Só não percebeu que iniciou um contágio onde o ‘vírus’ se instala em cada um de acordo com as suas evoluções e vivências pessoais, podendo tanto exacerbar características muito belas e muitos interessante como muito dolorosas, controversas, confusas e conflituosas. Assim este vírus parece ter tido uma repercussão de contágio desenvolvendo e empolando o básico de sobrevivência no funcionamento humano em reacção a uma ameaça, não real mas socialmente tecida, que anestesia e aliena, por forma a que se manifeste e repercuta o dispensável, se torçam as virtuosidades, se baralhem as prioridades, se enalteça a mesquinhez, se adulem imagens sem conteúdo, se dê espaço ao vazio de existências empobrecidas, se incentivem atitudes narcisicas e se castrem altruísmos solidários.
São cada vez mais os que se alimentam das dores, dos horrores, das fraquezas e das confusões dos outros, são como vampiros que insaciáveis vão sugando, esvaindo e aumentando o números dos que ficam em estado de vida letárgica, funcionando para uma sobrevida onde o estado de lucidez ou de loucura critica é tão distante como o estado de tranquilidade pacifica e contemplativa. Vampiros uns que sem dó nem piedade, sujeitam, manipulam, aliciam e seduzem, encurralando mediante a promessa de vida eterna, de glória permanente e poder sem limites. Vampiros outros que aceitam, anseiam e berram pelas dádivas que os uns lhes prometem da seiva extraída de outros, para apaziguarem as suas dores da sede do precioso liquido que estonteia, anestesia e embala para sonos sem sonhos. Vislumbro e pressinto o dia em que alegremente e sofridamente vampiros uns e vampiros outros ‘acordem’ da sua ‘vida eterna’ para um sentir de si, viajando e habitando o seu interior, numa constatação das suas possibilidades e lamento do tempo, gestos, olhares e palavras desperdiçados nos ícones hiperrealistas. Do tempo em que sugaram, perseguiram e impuseram emoções alheias, em detrimento de ouvirem, sentirem e desenvolverem as suas próprias emoções.
Nesse dia dir-se-á:
Chega de tanto espezinhar a afectividade humana!
Chega de tanto confundir a intelectualidade emocional!
Chega de tanto espremer as feridas que golpeámos!
Negai-vos a beber desse prometido néctar com sabor fétido, que vos é dado em taças de champanhe pelas mãos de vampiros disfarçados em messias que trazem a boa nova, e que vos entram pela casa dentro sem a polidez de bater à porta. Ousem dizer que não querem pois estão a tomar ‘antibióticos’ ou, tão simplesmente, que preferem a limpidez, cristalinidade e translucidez da água, a purificação e saciação do leite.
Saiam porta fora e procurem um amigo, se for necessário peçam à fada madrinha que vos transforme em beija-flor, para não pousardes e ficardes a dois metros do chão (como dizia o artista plástico Arthur Bispo do Rosário, esquizofrénico-paranoico, a propósito da loucura).
Quebrai o ciclo vicioso que vos transforma em vampiros de emoções, uns e outros.